A Física do lançamento oblíquo com Hotwheels

O lançamento oblíquo é um dos problemas mais interessantes da cinemática, e nós vamos utilizar o sensor de velocidade do post anterior para estudar o lançamento oblíquo utilizando uma pista e carrinhos Hotwheels.

O salto do Hotwheels como um lançamento oblíquo

A Figura 1 mostra uma composição de fotos com a trajetória que o carrinho faz durante um salto. A trajetória lembra a um lançamento oblíquo que estudamos na escola, mas note que o ponto de lançamento está a uma altura $L$ acima do nível onde ele cai.

Figura 1: Salto de um carrinho Hotwheels mostrando a trajetória, a altura máxima atingida e o alcance do salto. O carrinho deixa a rampa com velocidade $V_0$. Diferente do lançamento oblíquo tradicional, este salto ocorre a uma elevação L = 5,5 cm.

Agora veja como é legal o salto em câmera lenta!

Vídeo: Salto em câmera lenta.

Para estudar a física deste salto, utilizei uma pista Hotwheels composta por um lançador que põe o carrinho em movimento, uma rampa e uma caixa de areia para amortecer e marcar o ponto queda (como no salto a distância do atletismo), mostrada na Figura 2.

Figura 2: pista de salto com lançador, rampa e caixa de areia para amortecer e marcar o ponto exato de queda. Foram usados 2 carrinhos no experimento. O sensor de passagem é o mesmo do post anterior.

Quando acionamos o lançador, o carrinho é colocado em movimento com uma velocidade que depende da força com que batemos no lançador. O carrinho sobe a rampa, e realiza o salto. Se a a física estiver correta, o alcance do salto depende apenas do ângulo da rampa, da altura da rampa, e da velocidade com que o carrinho é lançado pela rampa.

A angulação foi determinada com ajuda de uma régua, e a velocidade de lançamento pode ser medida adaptando-se o sensor de passagem na rampa. Tudo o que precisamos e saber o tamanho do carro e o tempo de passagem do carro pelo sensor com ajuda do Arduino, conforme mostrado no post anterior.

A física do lançamento oblíquo

O lançamento oblíquo consiste em corpo lançado com uma velocidade $V_0$ fazendo um ângulo $\theta$ com a horizontal, conforme mostrado na Figura 3.

Figura 3: (esq.) Lançamento oblíquo. (dir.) Lançamento oblíquo elevado quando o corpo é lançado de uma altura L. Como veremos a seguir, o lançamento oblíquo elevado descreve melhor o salto de uma rampa.

Se, após o lançamento a gravidade for a única força atuando no corpo (nenhum efeito da resistência do ar), o corpo realiza um MRU (movimento retilíneo uniforme) na direção horizontal, e um MRUV (movimento retilíneo uniformemente variado) na direção vertical. As coordenadas $x(t)$ e $y(t)$ do corpo são dadas por:

$$x(t) = x_0 + V_{0x} t$$

$$y(t) = y_0 + V_{0y} t – \frac{g}{2}t^2$$

onde $(x_0,y_0)$ é a posição inicial do corpo, $V_{0x} = V_0 \cos \theta$ e $V_{0y} = V_0 \sin \theta$, e $g$ é a aceleração da gravidade. Este conjunto de equações descreve uma trajetória parabólica com uma altura máxima de

$$H = \frac{\sin^2\theta}{2 g}V_0^2$$

e um alcance dado por

$$A = \frac{\sin 2\theta}{g}V_0^2$$

O lançamento oblíquo com elevação

No salto do Hotwheels, o carrinho obedece um lançamento oblíquo com elevação. O alcance deste salto é determinado por:

$$A = V_{0x}(t_s+t_d)$$

Onde $t_s$ é o tempo de subida, e $t_d$ o tempo de descida. Estes tempos podem ser facilmente calculados tirando-se vantagem do fato de que o corpo realiza um MRUV na direção vertical.

$$t_s = \frac{V_{oy}}{g}$$

$$t_d=\sqrt{\frac{2(H+L)}{g}}$$

Para encontrar uma expressão bonitinha para o alcance tem um pequeno truque matemático. No nosso experimento, sabemos qual é a altura $L$ da rampa, mas não sabemos em princípio qual a altura $H$, pois não temos como medí-la neste experimento. E isso impede que a gente determine $t_d$ com precisão. Mas a gente assume que $L<H$ (também não é garantido), de forma que obtemos:

$$t_d = \sqrt{\frac{2H}{g}\left(1+\frac{L}{H}\right)}$$

$$t_d = \sqrt{\frac{2H}{g}}\sqrt{1+\frac{L}{H}}\approx \frac{V_{0y}}{g}+\frac{L}{V_{0y}}$$

Para obter a expressão de $t_d$ acima, usamos a famosa expansão de Taylor $(1+x)^n \approx 1 + n x$ (valido apenas se $|x| < 1$), onde $n=1/2$ e $x = L/H$. Com os valores de $t_s$ e $t_d$ acima, finalmente encontramos que a altura máxima e o alcance do salto são dados por:

$$H= \frac{sin^2\theta}{2 g}V_{0}^2+L$$

$$A \approx \frac{\sin 2\theta}{g}V_{0}^2+\frac{L}{\tan \theta}$$

Note que a expressão do alcance se assemelha a uma função do tipo $y = b x + c$, onde $y = A$, $b = \sin 2\theta/g$, $x = V_0^2$ e $c = L/\tan \theta$. Note também que o alcance independe do comprimento e da massa dos carrinhos Hotwheels. Portanto, os resultados devem ser idêntico para carrinhos diferentes.

Se a teoria acima estiver correta, ao medirmos $A$ e $V_0$ de vários lançamentos de carrinhos diferentes e construirmos um gráfico de $A$ vs $V_0^2$, devemos obter um gráfico semelhante ao da Figura 4.

Figura 4: os símbolos representam as medidas de alcance e velocidade obtidas em vários lançamentos de diferentes carros. A Linha vermelha representa a função que melhor ajusta os dados medidos à equação da teoria.

O experimento

Eu fiz uma série de experimentos com dois carrinhos diferentes, que foram lançados várias vezes cada um, com diferentes velocidades. Os dados obtidos são mostrados na Figura 5.

Figura 5: tabela de medidas e gráficos de 8 lançamentos feitos com dois carrinhos diferentes. Esta tabela foi construída em Excel e pode ser baixada aqui.

A Figura 5 mostra os dados medidos para 2 carros Hotwheels com diferentes tamanhos e pesos. Como não tenho controle da velocidade, os lançamentos não possuem nenhum ordem específica. Os saltos do carro 1 são indicados por quadrados laranja, e os saltos do carro 2 por círculos verde. Os dados de cada carro independente de fato se assemelham a uma reta sugerida pela Figura 3. Note também que as retas de cada carro são similares mas não são idênticas.

O coeficiente linear do carro 1 é $b_1 = 0,0463$ e do carro 2 é $b_2 = 0,0508$. Como os coeficiente linear deve ser tal que $b = \sin 2\theta/g$, se usamos $g = 9,81 m/s^2$, encontramos que a angulação da rampa para o carro 1 deve ser $\theta_1 = 13,51^o$, e para o carro 2 deve ser $\theta_1 = 14,95^o$. O valor real da angulação da rampa utilizada (medida com ajuda de uma régua) é de $\theta_{real} \approx 14,7^o$. Temos portanto um erro de aproximadamente 8% no carro 1, e de 2% no carro 2 na estimativa do ângulo de lançamento.

Já para o coeficiente independente, para o carro tem-se $c_1 = 0,0711$, e para o carro 2 $c_2 = 0,0448$. O coeficiente independente é tal que $c = L\tan \theta$. Usando-se os valores de ângulo estimados para cada carro, os valores estimados de $L$ são $L_1 = 1,11$ cm para o carro 1, e $L_2 = 1,36$ cm para o carro 2. O valor exato na pista é de $L = 5,5$ cm. Obtivemos portanto um erro grande da ordem de 75%.

Conclusões

Os dados do salto dos carrinhos estão de acordo com a física do lançamento oblíquo, pois o gráfico de $A$ vs $V_0^2$ representa uma linha reta, conforme previsto pela teoria do lançamento oblíquo. As medidas também apontam para um valor de ângulação da rampa muito próximo do valor do real (com erro máximo de 8%). Isto também indica que o salto do carrinho obedece à física do lançamento oblíquo que a aprendemos na escola.

Por outro lado, os valores estimados de $L$ apresentaram um erro muito grande comparado ao valor real da pista. Este erro pode ser melhorado se aumentarmos o número de lançamentos para cada carrinho, especialmente para baixas velocidades. A velocidade mais baixa medida para o carrinho 1 foi de 1,744 m/s (alcance de 21 cm), e de 1,388 m/s para o carrinho 2 (alcance de 14 cm). Seria necessário mais medidas com velocidade menores que estas para que a estimativa de $L$ fosse mais próxima do valor real da pista utilizada. Uma outra razão possível que a exigência $L<H$ para justificar a expansão de Taylor pode estar sendo violada, uma vez que a rampa utilizada tem uma angulação suave de apenas $14,7^o$. Neste caso, o termo independente $L/\tan \theta$ na fórmula do alcance precisa de correção.

De qualquer forma, estou satisfeito com os resultados obtidos e podemos concluir que o salto dos carrinhos Hotwheels obedecem sim às leis da física do lançamento oblíquo!

Assista aqui a demonstração em vídeo deste experimento:

Um sensor, muitos experimentos

(Atualização em 07/11/2021): No final do post tem uma lista atualizada de experimentos feitos com este sensor.

No post anterior aprendemos a dar os primeiros passos com Arduino. E agora chegou a hora de desenvolvermos um sensor muito simples que servirá de base para vários experimentos: um sensor de passagem.

Este sensor tem um princípio de funcionamento bastante simples: coloca-se um LED IR frontalmente iluminando um fototransistor (FT). Se houver luz chegando no FT, ele manda um sinal de “ligado” ao Arduino. Se houver algum obstáculo entre os dois impedindo que o LED ilumine o FT, ele manda um sinal de “desligado” para o Arduino.

Um outro arranjo possível é o arranjo lateral. O LED é posicionado lateralmente ao FT, e a iluminação deste pelo LED acontece por reflexão. Nesta configuração, o comportamento do FT se inverte: o sinal de “ligado” é enviado somente se houver algum obstáculo na frente do sensor que reflita a luz do LED. A Figura 1 mostra a resposta do sensor no arranjo frontal e no arranjo lateral.

Figura 1: arranjos frontal e lateral do LED em relação ao fotodiodo.

Circuito do sensor de passagem

O sensor de velocidade acima descrito pode ser facilmente construído com o Arduino Uno usando-se o diagrama abaixo:

Figura 2: Circuito do sensor de passagem.

A Figura 2 mostra que apenas 3 portas do Arduino são utilizadas. As portas 5V e GND fornecem energia para o LED e FT. O estado do FT pode ser lido tanto numa porta analógica, quanto numa porta digital. Mas preferi a porta digital (aqui escolhi a porta digital 3) porque há apenas dois estados possíveis: “ligado” ou “desligado”. Se utilizássemos a porta analógica, teríamos de nos preocupar em detectar valores entre 0 e 1023, e tentar entender se o sensor está no estado “ligado” ou “desligado”.

Vamos demonstrar o circuito acima de duas formas. A primeira forma é mais simples, e serve apenas para observar graficamente o funcionamento básico do sensor de passagem. Na segunda demonstração, iremos escrever um código que mede o tempo de passagem pelo sensor.

Sketch Arduino (1a. demonstração)

Na primeira demonstração, o Arduino monitora a porta digital onde o FD está conectado, envia o valor medido para a porta serial, enquanto nós observamos o valor de saída. Veja o código abaixo:

// Definição das entradas 

// define o pino digital 3 como entrada do fototransistor
const int FOTOpin = 3; 

void setup() {
  // coloque aqui o código de inicialização que será executada apenas uma vez.
  
  // configuração do pino 3 como entrada
  pinMode(FOTOpin, INPUT); 

  // inicializa a saída serial do Arduino
  Serial.begin(9600); 
 
}

void loop() {
  // put your main code here, to run repeatedly:

  // leitura do fotodiodo
  int v1 = digitalRead(FOTOpin); 

  // escreve a leitura do fototransistor na porta serial
  Serial.println(v1);  
}

Faça o upload do código acima para o Arduíno, clique no menu TOOLS/SERIAL PLOTTER para observar a leitura do FD. Passe a mão entre o LED e o FD e veja o que acontece.

Sketch Arduino (2a. demonstração)

Na segunda demonstração, o Arduino vai monitorar o FD e medir o tempo de passagem do objeto pelo sensor.

// Definição das entradas

// define o pino digital 3 como entrada do fototransistor
const int FOTOpin = 3; 
bool ligado = false;
long dt;

void setup() {
 // coloque aqui o código de inicialização que será executada apenas uma vez.
  
  // configuração do pino 3 como entrada
  pinMode(FOTOpin, INPUT); 

  // inicializa a saída serial do Arduino
  Serial.begin(9600); 
 
}

void loop() {
  // put your main code here, to run repeatedly:

  // leitura do fotodiodo
  int v1 = digitalRead(FOTOpin); 

  // detecta se um objeto chegou no sensor
  if ((v1 == HIGH) & (ligado == false)){
    ligado = true;
    dt = millis();
  }  

  // detecta se um objeto saiu do sensor
  if ((v1 == LOW) & (ligado == true)){
    ligado = false;
    dt = millis() - dt;
    Serial.print("Tempo de passagem (ms) = ");
    Serial.println(dt);
  }  

}

Faça o upload do código acima para o Arduíno, clique no menu TOOLS/SERIAL MONITOR para observar o conteúdo da porta serial. Passe a mão entre o LED e o FD e veja o que acontece. Não há mais uma descrição gráfica do sinal do FD, mas sim mensagens mostrando a duração em milissegundos da passagem de um objeto pelo sensor. Se conhecermos o tamanho do objeto é possível determinar a velocidade de passagem dele pelo sensor.

Sensor de passagem como um sensor de velocidade

Imagine que o nosso sensor acima possa ser montado de forma que um objeto de comprimento $L$ passe pelo sensor. Quando o objeto passa pelo sensor, a luz do LED no FT vai ser bloqueada por um tempo $\Delta t$. Assumindo que a largura do feixe do LED é infinitamente estreito, o objeto percorre uma distância $\Delta x = L$ ao cruzar o sensor. A velocidade média do objeto de comprimento $L$ ao passar pelo sensor é dada por:

$$\bar{v} = \frac{L}{\Delta t}.$$

O funcionamento básico do sensor é mostrado na animação abaixo:

Adaptando o sensor para medir a velocidade de uma NERF

Adaptei o sensor para medir a velocidade de carrinhos de brinquedo sobre umaa mesa e funcionou legal. Mas veio a pergunta “Será que este sensor funciona para coisas que se movem muito rápido?”. Daí resolvi testá-lo para medir a velocidade do objeto mais rápido a minha disposição: uma NERF. Para quem não sabe, NERF é aquela arma de brinquedo que atira dardos macios.

Um dardo de NERF (que peguei de um brinquedo que meu filho não brinca mais) tem 73 mm, e o tempo de passagem pelo sensor variou entre 4 ms e 5 ms. Usando-se o valor médio de 4.5 ms a velocidade de um tiro de NERF atinge impressionantes 58,4 km/h !!!!!!!

Tentei checar esse valor em outras fontes, e descobri neste vídeo aqui, que velocidade da NERF depende do modelo. No vídeo, um homem testa 5 modelos de NERF e mede velocidades que variam aproximadamente entre 50 km/h e 70 km/h, dependendo do modelo.

Fiquei muito feliz que o nosso sensor de passagem foi capaz de fornecer valores compatíveis com outras medições feitas com instrumentos profissionais de alta precisão.

Conclusões: um sensor, muitos experimentos

Em conclusão, nosso sensor baseado em Arduino, além de simples e barato, é bastante preciso. Como o título deste post já fala, este sensor servirá de base para uma série de experimentos muito interessantes nos próximos posts.

ATUALIZAÇÃO IMPORTANTE (feita em 07/08/2021):
No post Conservação da energia mecânica com Hotwheels e Arduino, eu mostrei como mudar o código acima para aumentar a precisão do sensor de milissegundos para microssegundos, e obter velocidades ainda mais precisas.


Lista de experimentos feitos com apenas um sensor de velocidade (atualizado em 07/09/2021):